“Muitos
anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía
havia de lembrar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o
gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana-brava construídas
à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras
polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”.
No
seu extraordinário romance, Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez cria um
mundo imaginário, utópico e mítico entre o real e o fantástico, em um povoado
chamado Macondo desde sua fundação até sua destruição. Cem Anos de Solidão pode
ser a história em sete gerações de uma família marcada pela solidão e pela
fatalidade do seu destino. A saga da família dos Buendía será a repetição da
tragédia dos anteriores, e também o tempo mítico de um povoado imaginário
chamado Macondo onde cem anos reúne centenas de séculos.
Na
primeira leitura do romance temos quatro etapas: a primeira etapa corresponde à
fundação de Macondo; a segunda às guerras de independência; a terceira à
intenção do capital estrangeiro nas plantações de banana; a quarta à revolução
e as guerras civis. Em todas essas etapas o tempo histórico é cronológico e
linear com a história de Macondo e da família Buendía contada por um
autor-narrador, em outra dimensão temporal, contando fatos já ocorridos.
Na
segunda leitura do romance, o tempo histórico e linear se alterna na narrativa
com o tempo mítico, cíclico e renovável. Existe em Cem Anos de Solidão uma
tensão entre a Utopia de fundação, a Epopéia destruidora e a imaginação mítica
que relembra e recobra o tempo presente, simultâneo e eterno do mito.
A
Utopia, U-topos lugar que não existe,
é a representação inocente, sonho e desejo. Macondo como povoado imaginário e
imaginado, terra inventada e desejada, a idade de ouro. José Arcádio Buendía e
sua família peregrinaram pela selva, dando voltas até encontrar precisamente o
lugar onde fundar a nova Arcádia, a terra prometida das origens e representação
da inocência: “O mundo era tão recente,
que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las havia de assinalá-las
como o dedo”.
A
Epopéia, sonho negado pela necessidade histórica, começa quando José Arcádio
Buendía abandona a adivinhação pela ciência, ao passar do conhecimento sagrado
ao exercício hipotético, abre as portas à segunda parte do romance. A Epopéia é
o transcurso no qual a fundação utópica de Macondo é negada pela necessidade
ativa da história e do tempo cronológico.
“O
Mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias
gerações e que relata uma explicação do mundo”. O mito é uma verdade que
esconde outra verdade. Cem anos de Solidão, espaço-tempo mítico, cronotopos, cujo caráter
simultâneo e renovável; onde o passado se repete no presente e o futuro pode
ser previsível porque de alguma maneira já ocorreu, em que tudo será
esclarecido no final quando saberemos que toda a história de Macondo já estava
escrita cem anos antes pelo cigano Melquíades, autor-narrador e personagem, que
acompanhou Macondo em sua fundação. “O tempo em Macondo não existe, está
congelado”.
Em
Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez mostra como Cervantes “as
fronteiras da realidade dentro de um livro e as fronteiras de um livro dentro
da realidade”